segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Afoxé é de Origem Nobre

Texto de Marco Aurélio Luz



O afoxé irradia o axé dos cânticos e das músicas de quem compõe e participa da expansão de seu som.

As mensagens que aludem à trajetória da luta de liberdade pelos direitos de territorialidade, cantadas em yoruba ou no português dos antigos africanos, atualiza num aqui e agora, a alegria e o prazer de pertencer ao afoxé.

Mãe Senhora, Iyalorixá Oxun Muiwa e Iyanassô, esse título recebido do Alaafin Oyó, rei de Oyó, a capital política do reino nagô-yoruba onde Xangô é o orixá patrono, demarcava a territorialidade de seus poderes com a frase “Da porteira para dentro; da porteira para fora”, querendo destacar a soberania absoluta da tradição que assegura a continuidade do axé, dos ilê axé das casas de axé.

Se por um lado no que se refere à liturgia, aos preceitos rituais, os poderes hierárquicos da tradição são absolutos, no que se refere às ações projetadas para fora, elas entram em espaços de luta e afirmação.

É aqui nesse contexto que se situam os afoxés, cujas armas são a estética do encantamento, composta de beleza e alegria; valores da linguagem da tradição nagô se espraiando pelo espaço urbano do carnaval.

Nas vilas e cidades nagô-yoruba na África é comum festivais religiosos acontecerem em espaços públicos. As entidades desfilam acompanhadas pelo povo em procissão, como o culto Gelede dedicado às Mães Ancestrais, em Ketu; festivais do culto aos Egungun, os Baba Egun, os ancestrais masculinos, em diversas cidades do antigo império yoruba; a famosa procissão do Ataojá ao rio Oxun, para as oferendas ao rei Laro, ancestral fundador da cidade de Oshogbo onde Oxun é o orixá patrono, ocasião em que ocorre a visita de vários reis vizinhos que reforçam os laços de amizade; o festival Epa em Ekiti, onde ocorre um cortejo de entidades que proporciona a elaboração da saga da humanidade, na presença das maiores autoridades locais, dentre muitos e muitos outros cortejos.

No Brasil, num contexto histórico adverso para manter viva essas tradições africanas dos cortejos, eles acontecem em meio a certas referências católicas como a procissão da sociedade de Nª. Senhora da Boa Morte, em Cachoeira (BA);, a famosa Lavagem do Bonfim, em Salvador-BA e tantas mais, sem mencionarmos outras referências africano-brasileiras como os cortejos dos Maracatus, em Pernambuco; as Congadas, de Minas Gerais; a coroação dos reis e rainhas do Congo, espalhadas pelo País.

O carnaval abre possibilidades de novos embates para ocupação do espaço público. Algumas instituições se deslocam estrategicamente do espaço das referências católicas para o carnaval, como, por exemplo, os Maracatus.

O afoxé “Troça Carnavalesca Pai Buruko” foi fundado em Salvador (BA), por Deoscoredes Maximiliano dos Santos – Mestre Didi Alapini – descendente da tradicional linhagem Asipa, na roça do Ilê Axé Opo Afonjá, no tempo da inesquecível Mãe Aninha – Iyalorixá Oba Biyi – nos fins da década de 1930. Ele e mais alguns amigos seguiram as orientações da avó Aninha e, depois de algumas tratativas, foi criado o “Pai Buruko”.

Afoxé é palavra da língua yoruba composta de duas outras palavras, “afo”, que é sopro, hálito que acompanha a emissão da palavra pronunciada, de quem a pronuncia; e “axé”, que em geral se traduz por força espiritual, força emanada de uma visão sagrada de mundo.

Desse modo o afoxé irradia o axé dos cânticos e das músicas de quem compõe e participa da expansão de seu som. A levada das mensagens dos integrantes do grupo carnavalesco se faz através do ritmo ijexá, que é característico de Oxun, patrona da música.

Os instrumentos são basicamente pequenos tambores ou atabaques, os agogôs, os xekerés e, ainda, na partida, também os clarins para a execução do hino.

Antes de mais nada, porém, para que as mensagens sejam bem recebidas e tudo ocorra bem, são feitos os preceitos necessários às entidades, para que protejam e abram os caminhos por onde circulará a Troça...

O “Pai Buruko” canta e dramatiza os valores e os desejos de liberdade de sua gente afirmando, desde suas vestimentas, o cabedal de herança do contínuo civilizatório africano e as estratégias da luta de reposição e afirmação existencial no contexto em que acontece.

O afoxé possui alguns momentos característicos após o hino: afirmações e reivindicações, como nos versos:
”jiribumbum, qui tera é nossa”,
“visitá governadô prá esse vida miorô”

A dramatização do “oluô” que brinca com os assistentes “jogando búzios”:
“aile aila Buruko já vai jogá”

A “fuga”
“pai Buruko soldadevém”
“entra em beco sái in beco”

As brincadeiras ao som do ijexá ou do samba de roda:
“o samba aqui tava bão gente de fora chego trapaiô”

As despedidas:
“minha gente vam simbora qui o vapo já suviô essa gente anda dizendo qui o agogô num presto...”

O afoxé vai evoluindo no ritmo encantador do ijexá e na alegria de seus componentes irmanados na liberdade da afirmação de seus valores, através da brincadeira, da troça, “Troça Carnavalesca Pai Buruko”.

As mensagens que aludem à trajetória da luta de liberdade pelos direitos de territorialidade, cantadas em yoruba ou no português dos antigos africanos, atualiza num aqui e agora, a alegria e o prazer de pertencer ao afoxé.

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Marco Aurélio Luz é Elebogi e Oju Oba, integrante da Troça Carnavalesca Pai Buruko. Doutor em Direito do Trabalho e Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRJ, autor do livro Agadá: dinâmica da civilização afro-brasileira, editora UFBA/Pallas. 1995, dentre outros. - maolluz@terra.com.br
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Algumas obras de Marco Aurélio Luz

Agada: Dinâmica da Civilização Africano-Brasileira
Centro Editorial e Didático da UFBA, ISBN 8523201106 (85-232-0110-6)

Cultura Negra Em Tempos Pós-modernos
EDUFBA, ISBN 8523202781 (85-232-0278-1)

Do Tronco Ao Opa Exim: Memória e Dinâmica da Tradição Afro-Brasileira
Pallas, ISBN 8534701660 (85-347-0166-0)

Identidade Negra e Educação