Os Sertões é a “obra cumbre” da literatura brasileira
Texto de Juarez Bomfim
"É dito que o poliglota bardo argentino Jorge Luiz Borges, aquele que não sabia em que língua iria morrer, considerava a língua portuguesa feia, todavia tinha trazido ao mundo um grande escritor e uma obra-prima: Euclides da Cunha e Os Sertões. Não houvesse Euclides da Cunha imortalizado nessas grandiosas páginas a saga de Antonio Conselheiro, talvez este fosse mais um episódio da história do Brasil relegado ao mofo de antigos livros de história ou apenas tratado por especialistas nas suas teses de doutorado.Os espanhóis usam uma interessante expressão para apresentar o clássico “Dom Quixote” de Miguel de Cervantes: “obra cumbre” da literatura espanhola. Parodiando esta belíssima “lengua hermana”, podemos dizer: Os Sertões é a “obra cumbre” da literatura brasileira.São inolvidáveis as máximas euclidianas imortalizadas neste livro: "o sertanejo é, antes de tudo, um forte”; a sua épica: "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento” - a tragédia sertaneja do massacre perpetrado pelo Exército brasileiro contra o seu próprio povo.O prestigioso escritor peruano Mario Vargas Llosa se atreveu a escrever um “remake” d’Os Sertões no seu “A guerra do fim do mundo”. Bom livro. Porém, colocado lado a lado com a ilíada nordestina, parece apenas uma pálida cópia do original.Quem conhece o sertão de Canudos visualiza filmicamente esta cena narrada a seguir: "o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços do litoral. A sua aparência, entretanto, no primeiro lance de vista, revela o contrário. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, é o homem permanentemente fatigado”. Entretanto Euclides adverte: “toda essa aparência de cansaço ilude”, pois na lida cotidiana da perseguição de arisco boi fujão; ou na luta contra as tropas de Moreira César - o implacável “Corta-cabeças” da Guerra do Paraguai – o sertanejo se torna um mítico titã: “No revés o homem transfigura-se e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias".Os Sertões é dividido em quatro partes: A Terra, O Homem, A Luta e Últimos Dias. Aqui vai uma dica àqueles que esmorecem logo nas primeiras 58 páginas do capítulo A Terra - por desconhecerem termos e conceitos da geologia e geografia física, tropeçando na nem tão acidentada conformação orográfica da região.Comecem a fundamental leitura pelo capítulo A Luta e encerrem a tragédia com os Últimos Dias da Vendéia brasileira, onde os soldados do Exército Nacional esmeram-se em perversidades, impondo aos prisioneiros mortes cruéis: “agarravam-nos pelos cabelos, dobrando-lhes a cabeça, esgargalhando-lhes o pescoço e francamente exposta a garganta, degolavam-nos”.Uma vez espantada a macabra cena, arrebatados pela excelente narrativa, se atrevam então a enveredar por A Terra e O Homem.Euclides da Cunha assistiu somente às três semanas finais da Guerra de Canudos, como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo no front. Não precisou mais para narrar a épica tragédia. Tragédia que o acompanharia na vida pessoal, mas isso já é um outro assunto.Na Bahia, pioneiro nos estudos sobre o importante fato social foi o Prof. José Calazans, fundador do Núcleo Sertão da Universidade Federal da Bahia. José Calazans documentou e entrevistou contemporâneos ainda vivos do Conselheiro. Precioso acervo.Um incansável pesquisador que hoje em dia cultiva e preserva a memória de Canudos é o Prof. Luiz Paulo Neiva, coordenador do Centro de Estudos Euclides da Cunha (UNEB); a destacar também os trabalhos de cineastas e cientistas sociais que se debruçam sobre o acontecimento.Não resta dúvida que a Guerra de Canudos significou uma das históricas lutas sociais do trabalhador rural sem terra. Apesar da teoria sociológica do materialismo histórico ser insuficiente para compreender tal fenômeno social, podemos arriscar e dizer que Canudos continua atual, pois as elites que massacraram o povo sertanejo continuam a guerrear contra o povo brasileiro, através dos seus herdeiros.O megabandido brasileiro Daniel Dantas, condenado a dez anos de prisão pela Justiça Federal, é descendente do Barão de Jeremoabo, seu tri-avô. O famigerado latifundiário foi o principal inimigo da comunidade mística de Canudos e – ótimo missivista – quem mais insuflou o Estado brasileiro contra aquele povo pobre, disseminando a mentira de que era um forte movimento de restauração monárquica organizado no interior da Bahia.Foi a seu pedido que o governador Luiz Viana enviou uma força policial para chacinar Canudos, a qual foi desmantelada. Por falar em Luiz Viana, o seu homônimo herdeiro, Luiz Viana Filho, foi governador da Bahia no mais sangrento período da Ditadura Militar brasileira (1967-1971). Parece haver uma continuidade geracional da guerra das elites contra o povo. Continuam a combater Canudos em episódios como o assassinato de Chico Mendes; no massacre de Eldorado de Carajás-Pa; no desrespeito aos direitos indígenas. Canudos vive. Vive na esperança do povo pobre que não se rende. "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento, quando caíram seus últimos defensores, quando todos morreram. Eram apenas quatro: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados".
"É dito que o poliglota bardo argentino Jorge Luiz Borges, aquele que não sabia em que língua iria morrer, considerava a língua portuguesa feia, todavia tinha trazido ao mundo um grande escritor e uma obra-prima: Euclides da Cunha e Os Sertões. Não houvesse Euclides da Cunha imortalizado nessas grandiosas páginas a saga de Antonio Conselheiro, talvez este fosse mais um episódio da história do Brasil relegado ao mofo de antigos livros de história ou apenas tratado por especialistas nas suas teses de doutorado.Os espanhóis usam uma interessante expressão para apresentar o clássico “Dom Quixote” de Miguel de Cervantes: “obra cumbre” da literatura espanhola. Parodiando esta belíssima “lengua hermana”, podemos dizer: Os Sertões é a “obra cumbre” da literatura brasileira.São inolvidáveis as máximas euclidianas imortalizadas neste livro: "o sertanejo é, antes de tudo, um forte”; a sua épica: "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento” - a tragédia sertaneja do massacre perpetrado pelo Exército brasileiro contra o seu próprio povo.O prestigioso escritor peruano Mario Vargas Llosa se atreveu a escrever um “remake” d’Os Sertões no seu “A guerra do fim do mundo”. Bom livro. Porém, colocado lado a lado com a ilíada nordestina, parece apenas uma pálida cópia do original.Quem conhece o sertão de Canudos visualiza filmicamente esta cena narrada a seguir: "o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços do litoral. A sua aparência, entretanto, no primeiro lance de vista, revela o contrário. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, é o homem permanentemente fatigado”. Entretanto Euclides adverte: “toda essa aparência de cansaço ilude”, pois na lida cotidiana da perseguição de arisco boi fujão; ou na luta contra as tropas de Moreira César - o implacável “Corta-cabeças” da Guerra do Paraguai – o sertanejo se torna um mítico titã: “No revés o homem transfigura-se e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias".Os Sertões é dividido em quatro partes: A Terra, O Homem, A Luta e Últimos Dias. Aqui vai uma dica àqueles que esmorecem logo nas primeiras 58 páginas do capítulo A Terra - por desconhecerem termos e conceitos da geologia e geografia física, tropeçando na nem tão acidentada conformação orográfica da região.Comecem a fundamental leitura pelo capítulo A Luta e encerrem a tragédia com os Últimos Dias da Vendéia brasileira, onde os soldados do Exército Nacional esmeram-se em perversidades, impondo aos prisioneiros mortes cruéis: “agarravam-nos pelos cabelos, dobrando-lhes a cabeça, esgargalhando-lhes o pescoço e francamente exposta a garganta, degolavam-nos”.Uma vez espantada a macabra cena, arrebatados pela excelente narrativa, se atrevam então a enveredar por A Terra e O Homem.Euclides da Cunha assistiu somente às três semanas finais da Guerra de Canudos, como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo no front. Não precisou mais para narrar a épica tragédia. Tragédia que o acompanharia na vida pessoal, mas isso já é um outro assunto.Na Bahia, pioneiro nos estudos sobre o importante fato social foi o Prof. José Calazans, fundador do Núcleo Sertão da Universidade Federal da Bahia. José Calazans documentou e entrevistou contemporâneos ainda vivos do Conselheiro. Precioso acervo.Um incansável pesquisador que hoje em dia cultiva e preserva a memória de Canudos é o Prof. Luiz Paulo Neiva, coordenador do Centro de Estudos Euclides da Cunha (UNEB); a destacar também os trabalhos de cineastas e cientistas sociais que se debruçam sobre o acontecimento.Não resta dúvida que a Guerra de Canudos significou uma das históricas lutas sociais do trabalhador rural sem terra. Apesar da teoria sociológica do materialismo histórico ser insuficiente para compreender tal fenômeno social, podemos arriscar e dizer que Canudos continua atual, pois as elites que massacraram o povo sertanejo continuam a guerrear contra o povo brasileiro, através dos seus herdeiros.O megabandido brasileiro Daniel Dantas, condenado a dez anos de prisão pela Justiça Federal, é descendente do Barão de Jeremoabo, seu tri-avô. O famigerado latifundiário foi o principal inimigo da comunidade mística de Canudos e – ótimo missivista – quem mais insuflou o Estado brasileiro contra aquele povo pobre, disseminando a mentira de que era um forte movimento de restauração monárquica organizado no interior da Bahia.Foi a seu pedido que o governador Luiz Viana enviou uma força policial para chacinar Canudos, a qual foi desmantelada. Por falar em Luiz Viana, o seu homônimo herdeiro, Luiz Viana Filho, foi governador da Bahia no mais sangrento período da Ditadura Militar brasileira (1967-1971). Parece haver uma continuidade geracional da guerra das elites contra o povo. Continuam a combater Canudos em episódios como o assassinato de Chico Mendes; no massacre de Eldorado de Carajás-Pa; no desrespeito aos direitos indígenas. Canudos vive. Vive na esperança do povo pobre que não se rende. "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento, quando caíram seus últimos defensores, quando todos morreram. Eram apenas quatro: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados".