quinta-feira, 25 de junho de 2009

ARTIGO: A liberdade de expressão eo cinismo patronal





"A discussão sobre o fim do diploma de Jornalismo continua em pauta , seja pelas comparações sem sentido utilizadas pelos ministros em seus votos ( como a que compara a formação dos profissionais de imprensa ao de chefes de cozinha) , seja pelos motivos alegados pelos jornalões e entidades patronais para justificarem a decisão da Justiça.

Todos sabemos dos privilégios de que desfrutam algumas castas em nosso País, com salários formidáveis e uma arrogância maior ainda (sempre seremos uma república de doutores), e esta situação é típica de democracias que ainda não se consolidaram e que vivem reféns de poderes constituídos que legislam em prol de seus interesses. Aqui nos deparamos com freqüência com os "lalaus", com vetustos senadores que mantêm em gavetas segredos envolvendo sobrinhos (o Senado tem mais sobrinhos do que o Pato Donald!), mordomos, planos de saúde vitalícios, viagens à custa do nosso dinheiro, mensalões e uma gama considerável de atos imorais ou ilegítimos. Somam-se a estes muitos empresários da mídia que confundem o trabalho da imprensa com balcões de negócios e que, volta e meia, fecham seus veículos, sem ao menos indenizarem os jornalistas que os sustentaram por longo tempo.


Mas, dentro dos limites desta coluna, cabe-nos analisar apenas um dos motivos alegados pelos ministros, com a adesão integral dos empresários da comunicação: a liberdade de expressão.


As perguntas básicas são: o fim do diploma restaura mesmo a liberdade de expressão? De que liberdade de expressão estão falando ministros e patrões da imprensa em coro uníssono?


O equívoco (que não é involuntário, mas orgânico ) pode ser percebido a partir de duas alternativas: a) falta de entendimento sobre o processo de produção jornalística e b) total desconhecimento do conceito de liberdade de expressão.


Na verdade, a liberdade de expressão na mídia não se resume à ação dos profissionais de imprensa que, no jornalismo moderno, íntegro, recorrem a fontes para dar conta de suas pautas e produzir suas matérias. Apenas os colunistas, comentaristas, cronistas podem expressar, sem outros filtros - e até censuras - as suas opiniões porque na reportagem padrão existe a mediação das fontes. O jornalista, em princípio, cobre assuntos vários e necessita recorrer a outras falas.


Se estamos nos referindo a colunistas ou comentaristas veremos que muitos deles nunca precisaram de diploma e nem lhes tem sido feita esta exigência. Vide o caso de Dráuzio Varella, do Marcelo Gleiser, José Goldemberg, Xico Graziano e dezenas de outros profissionais que escrevem nos jornalões, ou de jogadores de futebol e até árbitros que transitam tranquilamente pela televisão brasileira, com participações competentes ou não.


O conceito de liberdade de expressão de alguns ministros que decidiram pelo fim do diploma ou da ANJ e ABERT é bastante singular .


Certamente, ele coincide com a perspectiva das elites que acreditam que só devem ser convidados para manifestar sua opinião os bem letrados, os que exibem currículos Lattes, os amigos da casa, os que financiam os veículos. Seria ingênuo esquecer que boa parte da imprensa brasileira está em mãos de caciques políticos ou grupos econômicos, a maioria dos quais com assento no Parlamento brasileiro, e que utilizam as concessões oficiais de rádio e televisão para defenderem os seus interesses. Uma outra parte é apropriada por aventureiros que utilizam a imprensa para negociar favores ou buscar visibilidade para os seus próprios negócios extrajornalísticos. Deve ser esta a visão de liberdade de expressão a que se referem a ANJ e a ABERT.


Um levantamento mesmo que ligeiro vai evidenciar que os movimentos sociais, o cidadão comum, as organizações não governamentais, os sem titulação estão praticamente ausentes da mídia brasileira e que, quando muito, preconceituosamente, freqüentam as páginas policiais. Um olhar ainda que rápido vai mostrar que os empresários da mídia convidam para colunistas, articulistas etc pessoas bem situadas, numa bem planejada troca de favores (secretários de Estado, advogados, juristas, grandes empresários etc), e nunca pessoas comuns, trabalhadores, agricultores familiares ou mesmo pequenos empresários. Os patrões da mídia sempre deram voz apenas para as elites, para os seus amigos e os seus parceiros em negócios muitas vezes excusos, e que ilustram negativamente a história da imprensa nacional. Certamente, há exceções, mas elas apenas confirmam a regra.


O importante é que o diploma nunca teve a ver com a liberdade de expressão, assim como na grande imprensa brasileira os jornalistas jamais tiveram a liberdade para definir, autonomamente, as pautas e suas orientações. Elas foram e continuam sendo conduzidas por linhas editoriais, controladas por prepostos dos patrões que buscam sintonizá-las com os seus interesses particulares (políticos, comerciais, ideológicos).


A relação capital x trabalho (não há aqui qualquer tentativa de ideologizar a questão) é uma realidade na grande imprensa, dominada pelas famílias ilustres e que jamais, para utilizar uma evocação de um ex-presidente também da elite, deram voz para quem trabalha na cozinha, no campo (a não ser grandes empresários rurais ou latifundiários).


A liberdade de expressão defendida por ministros e entidades patronais de comunicação tem a ver com a sua visão pouco democrática de liberdade, da rejeição a um processo autêntico de diversidade cultural, da falta de respeito em relação às minorias e de preconceito contra os que não têm diploma, os verdadeiros excluídos deste país.


O cinismo empresarial , ao defender a extinção do diploma, em nome de uma estranha liberdade de expressão, merece o nosso repúdio porque será sempre razoável perguntar: onde estão os sem diploma nas páginas de jornais (quantos têm espaço para essa expressão?) e nos programas de rádio e televisão?


Os patrões e os ministros, voluntária e equivocadamente, apesar do discurso hipócrita, estavam, na prática, buscando desestabilizar as organizações sindicais e criando condições para a degradação do salário profissional. Alguns talvez tenham se aproveitado para uma represália à categoria que continuamente vem denunciado posturas discutíveis nos poderes constituídos e outros certamente, por convicção, têm mesmo uma percepção muito particular da liberdade de expressão.


Ministros e muitos empresários da comunicação nunca se preocuparam com os sem diploma e nunca lhes deram qualquer chance de expressar as suas idéias. Na verdade, nunca quiseram saber deles porque transitam em um ambiente protegido, onde se manifestam pessoas com diploma e poder e sólidas relações de amizade ou comerciais.

Será sempre possível e necessário discutir a qualidade dos cursos de Jornalismo, a sua adequação à realidade brasileira e aos imensos desafios que temos de superar, mas continua sendo fundamental questionar a legitimidade daqueles que, de maneira oportunista, se arvoram como defensores da liberdade de expressão.

As elites brasileiras sempre buscaram estar mobilizadas para defender os seus interesses. É fácil entender a lógica de muitos empresários da comunicação: basta ver os editoriais e reportagens de jornalões paulistas indicando os deslizes éticos de empresas de tabaco e empreiteiras e flagrar os patrocinadores de seus cursos para formação de jornalistas: exatamente a Philip Morris e a Odebrecht. Querem nos convencer sempre de que a área editorial e a comercial caminham separadas quando, na prática, elas se articulam numa relação que aparentemente parece ilógica. Fazem negócios, a gente sabe disso, mesmo quando denunciam posturas ilegítimas, assim como criticam os governos interessados em suas polpudas verbas publicitárias. Não fazem assim também bancadas de parlamentares quando ameaçam votar contra a posição oficial apenas para obter favores governamentais? A lógica é a mesma e está distante da que poderia apontar para uma autêntica liberdade de expressão.

Muitos empresários da mídia têm uma visão particular da imprensa e da liberdade de expressão. Com ou sem diploma, o Jornalismo, nos grandes veículos, continuará refém das elites porque este caráter está no seu DNA.

A sociedade e os jornalistas, com ou sem diploma, que quiserem praticar a autêntica liberdade de expressão, devem buscar outras alternativas e, sobretudo, estabelecer parcerias legítimas com os que não têm voz, não tem currículo Lattes e continuam excluídos do debate democrático e do processo de tomada de decisões.

A liberdade de expressão jamais será uma concessão ou dádiva dos empresários da mídia. Ela precisará ser conquistada a cada dia pela mobilização de todos nós. Eles estão preocupados demais com a sustentabilidade dos seus negócios para se preocuparem com a democracia.

Em tempo 1: Não temos qualquer preconceito em relação aos chefes de cozinha e sabemos que muitos deles, por absoluta competência, têm salários mais dignos do que aqueles com que os patrões da imprensa costumam contemplar os jornalistas.

Em tempo 2: Não é razoável confundir a profissão de jornalista com um papel, mesmo porque, em muitos e muitos casos, ele têm sido emitido por instituições que afrontam a educação brasileira e a formação do jornalista. Muitos destes cursos continuam existindo por omissão das autoridades da área educacional e mesmo dos demais poderes constituídos. Mas é mais fácil , a gente entende, abolir o papel do que moralizar a educação brasileira. Há políticos , ministros e outras autoridades ( e seus apadrinhados) que lucram formidavelmente com o negócio da educação.

Em tempo 3: Nem sempre os colunistas, comentaristas têm liberdade para expressar as suas opiniões. Os empresários da comunicação quase sempre patrulham também estes espaços, a começar pela escolha dos que podem ter opinião em seus veículos. Mas felizmente há jornalistas ou outros profissionais que conseguem fugir a este cerco, seja porque conseguiram esta autonomia por sua competência, seja porque, embora não os engula, os donos da mídia reconhecem que eles têm um público fiel ou lhes propiciam bons lucros (lembremo-nos do Juca Kfouri com o seu bordão: merchandising na televisão!). Mesmo quando preservam colunistas ou comentaristas com posições divergentes das suas, os patrões da mídia sempre têm em mira o seu negócio. Sua visão de liberdade de expressão passa obrigatoriamente pelo volume de sua receita ou audiência (o que dá no mesmo).



* Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor da UMESP e da USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa. Editor de 4 sites temáticos e de 4 revistas digitais de comunicação.