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| 23 de Outubro de 2012 12:17 |
Wilson Tosta // O Estado de S.Paulo
Um escândalo político generalizado, obra coletiva de dirigentes de um
partido que se declarava arauto da moralidade, e gerador de uma forte
reação das instituições, como a Procuradoria-Geral da República e o
Supremo Tribunal Federal (STF), que o Poder Executivo não pode brecar.
Para pesquisadores entrevistados pelo Estado, o mensalão significou um
rompimento com o tipo de corrupção que tradicionalmente marcou a
política brasileira. A ação individual dos corruptos, para fins
pessoais, foi sobrepujada pelo uso político-partidário do dinheiro sujo,
avaliam.
"Acho que não tem nada parecido na história do
Brasil", diz a cientista política e historiadora Maria Celina d’Araújo,
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). "Há
(tradicionalmente) casos individuais de corrupção. Agora, com um partido
que está no governo foi um fato único. Não estou dizendo que outros
partidos não tenham seus esquemas. Mas o caso do mensalão tem como
característica que as denúncias envolvem um partido. Foi feito de forma
sistemática."
A pesquisadora avalia que foi novidade, no
escândalo, o uso sistemático do sistema bancário. "Não foi só dinheiro
na cueca", ressalta, em alusão ao caso do assessor petista preso pela
Polícia Federal em 2005 com US$ 100 mil escondidos na roupa e levando
outros R$ 200 mil. Para Maria Celina, a corrupção apontada no escândalo
não tem a ver só com a sociedade brasileira, mas com o estágio das
sociedades em geral, com o que chamou de "avanço dos procedimentos
democráticos".
Coisa genética. "Enfim, não é uma coisa genética
do Brasil. Tem a ver com características institucionais da sociedade",
afirma Maria Celina. "Claro que a cultura importa. Mas, como cientista
política, acho que as instituições fazem a diferença. Com boas
instituições, a gente vai diminuir a corrupção. Se a gente tiver um
Judiciário funcionando direito, essas coisas não vão acontecer. Agora,
com um Judiciário que leva dez anos para começar a julgar um negócio... É
complicado, né?"
A capacidade de reação da sociedade é o
centro da argumentação do também cientista político Luiz Werneck Vianna.
"Da forma como foi, (a reação) foi nova", diz. "Preste atenção: o poder
político foi atingido. E o poder político não teve força para obrigar
as instituições a lhe servir, nem, de outro lado, de paralisar a
sociedade. A sociedade não está mobilizada em defesa dos réus. O poder
político assistiu a esse processo sem condições de intervir. Isso quer
dizer o seguinte: as instituições deram uma demonstração de força muito
grande. Acho que a República saiu fortalecida, independentemente do
resultado da sentença. O fato de que próceres políticos do governo e do
partido hegemônico tenham sofrido um processo, e ele tenha transcorrido
segundo todos os procedimentos previstos pela democracia política, esse é
o grande resultado."
Advertindo que a existência do mensalão
"nunca chegou" a ser provada, o historiador Daniel Aarão Reis Filho, da
Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca que "o PT envolveu-se em
grossa corrupção, que merece investigação, apuração e, quando for o
caso, condenações". Ele lembra que, apesar do que considera falta de
provas sobre o caso, "o nome (lançado por Jefferson) pegou e se tornou
uma arma política de combate ao governo Lula e ao PT".
O
pesquisador resiste, porém, a considerar o caso o maior do tipo na
história do País ou da República. "A tradição de corrupção na história
do Brasil é densa e antiga", afirma. "Digamos que o escândalo é um dos
mais importantes, pelos personagens envolvidos, pelo montante dos
recursos e pela promiscuidade entre o público e o privado." Aarão Reis
acha que é possível traçar paralelos com outros escândalos envolvendo
corrupção, como a crise que levou o presidente Getúlio Vargas, em 1954, a
se matar, ou o caso PC Farias, que provocou o impeachment do presidente
Fernando Collor em 1992. "Mas é preciso não esquecer a corrupção
disseminada na época da ditadura, que nem sequer era mencionada, muito
menos apurada e investigada."
O historiador discorda da ideia
de que nunca houve tanta corrupção no Brasil como agora. "A questão é
que ‘nunca antes neste País’ se investigou e se apurou como agora. O que
evidencia um amadurecimento democrático da sociedade, que resiste cada
vez mais à corrupção, e também o aperfeiçoamento das instituições –
menção especial à Procuradoria-Geral da República, bastante fortalecida
pela Constituição de 1988, e também à Polícia Federal. É preciso que as
pessoas saibam que é graças à democracia que os escândalos estão sendo
investigados. Ou seja, a democracia não é a causa dos escândalos."
Em sentido diverso, outro pesquisador da história brasileira, José
Murilo de Carvalho, autor, entre outros, de Os bestializados – o Rio de
Janeiro e a República que não foi –, avalia que o mensalão foi um caso
de gravidade extrema e inédita. "Pelo número e importância das pessoas
envolvidas, pela instância máxima do julgamento (STF) e pela grande
cobertura da imprensa, pode-se dizer que se trata da mais importante
denúncia de irregularidade da história da República", afirma.
Na monarquia. Ele avalia ser impossível fazer um paralelo com casos
ocorridos no Império e mesmo na República Velha. "Havia na época (da
monarquia) menos gente para roubar, menos coisas a serem roubadas e um
chefe de Estado com um lápis vermelho na mão para fiscalizar políticos e
funcionários. Na Primeira República, também as malfeitorias eram menos
comuns e mais contidas", explica o pesquisador.
José Murilo
pondera que, com o crescimento do Estado, cresceram o número e a
diversidade de políticos e as oportunidades de corrupção. "A essas
mudanças, digamos, estruturais, em parte devidas ao próprio avanço da
democracia, acrescentou-se, como fator precipitador, a impunidade dos
governantes durante o período militar, quando se formou boa parte da
elite política atual", diz ele. "A restauração da legalidade trouxe
avanços na democracia social, mas não nas práticas republicanas do bom
governo. E a combinação de mais oportunidades para malfazer, de um lado,
e liberdade de imprensa, um Ministério Público e uma Polícia Federal
mais atuantes, de outro, aumentaram a visibilidade da corrupção."
O pesquisador afirma ainda que mudanças da postura de partidos que
trocam a oposição pelo poder – como ocorreu com o PT – são fenômeno
conhecido. "No Império, dizia-se que nada era mais parecido com um
saquarema, um conservador, do que um luzia, um liberal, no poder, e
vice-versa. O poder é um vício, seu uso gera vontade de mais poder,
sobretudo entre nós, onde é cada vez mais um negócio", acrescenta.
Entre as causas do mensalão, ele aponta a tradição patrimonialista (de
apropriação privada do público) do Estado brasileiro, a necessidade de
formar grandes coalizões políticas e "a escandalosa impunidade da turma
do andar de cima", o que torna o crime compensador. "Daí a importância
do julgamento que está para começar. Por seu resultado se saberá se
tinha ou não razão o mensaleiro que profetizou a transformação do
episódio em ‘piada de salão’."
Autor de Corrupção, mostra a sua
cara, a ser lançado dia 2, o historiador Marco Morel, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), diz ser "fanfarronice" apontar o
mensalão como maior escândalo da história brasileira. "Até porque tem
muita corrupção que a gente nunca vai conhecer", ressalta.
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