Censura voluntária
Por Flávio Gordon em 08/11/2013
“Temos censura que não tivemos nem na ditadura”, afirmou o ator Antônio Fagundes em entrevista à Isto É. O Brasil vive, de fato, um momento espantoso, embora não de todo surpreendente para quem esteve atento nos últimos dez anos. A liberdade de expressão e de opinião está a um passo do cadafalso. E não, o problema maior nem é o partido que nos governa e os seus anseios de submeter os meios de comunicação ao seu jugo. Tal pulsão ditatorial existe e preocupa, é claro, mas gostaria de tratar aqui da sociedade como um todo, e não dos donos do poder, que poderiam menos, caso encontrassem uma cultura madura e capaz de resistir a fantasias tirânicas – o que definitivamente não é o caso do Brasil atual.
Os sinais de sufocamento das liberdades são muitos e alarmantes, a começar por este inacreditável “Procure Saber”, movimento liderado por artistas que uma sociedade sem parâmetros transformou em ídolos sacrossantos, e que agora almejam, com escandalosa sem-cerimônia, censurar biografias, um gênero literário já tão escasso no país.
Há também um clima generalizado de patrulha politicamente correta, que estimula reações histéricas e processos, como o que foi movido recentemente contra o humorista Danilo Gentili por uma senhora melindrada. A jornalista Rachel Sheherazade, por sua vez, teve sua cabeça pedida por organizadores de uma petição que exigia – como quem reivindica um direito natural inalienável – a sua demissão da emissora em que trabalha, além de pedidos públicos de desculpas. O delito? A jornalista fez críticas aos ativistas dos direitos dos animais que invadiram e depredaram o Instituto Royal. Parecia até que quem cometera crimes fora aquela, e não estes.
Outro caso chocante ocorreu na Flica (Festa Literária Internacional de Cachoeira), na Bahia, onde estudantes e membros do movimento negro impediram à força – sem que os organizadores do evento demonstrassem firmeza para os coibir – as falas dos intelectuais e articulistas Luiz Felipe Pondé e Demétrio Magnoli. Os jovens censores, agindo como os “comissários do povo” dos tempos de Stálin ou Mao Tsé-Tung, chegaram a se despir (o que, hoje, é a forma mais elevada de protesto que aquelas cabecinhas ocas são capazes de conceber) e jogar uma cabeça de porco no palco. A intenção era clara: marcar como párias os dois palestrantes, afirmando que a eles não se deve dar o direito à palavra, uma vez que as suas opiniões excluem-nos do rol de homens respeitáveis, quiçá da espécie humana (e rótulos difamatórios tais como “reacionário”, “burguês” e “racista” servem precisamente à desumanização e dessubjetivação do outro). Os organizadores da Flica, ao que parece, cederam.
E, por último, mas não menos importante, temos a ombudsman da Folha de São Paulo, Sra. Suzana Singer – irmã de André Singer, porta-voz da Presidência da República no primeiro governo Lula e petista de carteirinha –, chamando o seu colega, o jornalista e blogueiro Reinaldo Azevedo, de “rotweiller”, e, na prática, reprovando a sua contratação como colunista do jornal. A não ser por um desejo de lançar um estigma sobre o colunista – uma cabeça de porco retórica –, prevenindo os leitores da Folha para que não o lessem, a agressividade da ombudsman não se explica.
Como se não bastasse, a jornalista Miriam Leitão decidiu escrever um texto – clamando, pasmem!, por um debate de alto nível – no qual dava total apoio à ofensa destemperada da Sra. Singer. “Recentemente, Suzana Singer foi muito feliz ao definir como ‘rottweiller’ um recém-contratado pela ‘Folha de S. Paulo’ para escrever uma coluna semanal”, lê-se no artigo.
O texto lamentava a “miséria” e o “emburrecimento” do debate público brasileiro, imputados à atuação tanto de radicais de esquerda quanto de direita. No entanto, adotando uma posição pretensamente equilibrada e centrista (que eu costumo chamar demeiotermismo dogmático, o fetiche pelo meio-termo, ainda que entre o certo e o errado, o justo e o injusto, as vítimas e os agressores), a Sra. Leitão logo deixou para lá os radicais de esquerda – que, no texto, ela chama de “suposta esquerda”, como quem sugere que uma esquerda verdadeira, não “suposta”, jamais agiria daquela maneira radical (e ora me pergunto em que planeta ela esteve durante todo o século XX) –, preferindo concentrar os ataques no que qualificou de “direita hidrófoba”. O rótulo pejorativo referia-se, sem que autora citasse os nomes, a Reinaldo Azevedo, mas também ao economista, e articulista do Globo e da Veja, Rodrigo Constantino, autor do recém-lançado A Esquerda Caviar (Rio de Janeiro: Record, 2013). Por já ter dado umas boas lições de economia à Sra. Leitão, e também por haver criticado o seu pueril entusiasmo feminista diante da escolha de uma mulher para comandar o FED, Constantino foi alvo do rancor da jornalista, que o qualificou como “um desses articulistas que buscam a fama.”
Se, como os censores da Flica, a Sra. Langer jogara a sua cabeça de porco no palco midiático, a Sra. Leitão, por sua vez, optou por se despir também como aqueles, revelando toda a sua intolerância e espírito policialesco.
Todos os casos acima elencados sucederam-se no intervalo de não mais do que duas semanas. Se seguirmos nesse ritmo, 1984 é logo ali.
George Orwell, aliás, autor da célebre obra de denúncia aos métodos totalitários soviéticos, identificou um problema semelhante ao nosso entre os jornalistas e formadores de opinião na Inglaterra do seu tempo; muitos deles simpáticos ou, no mínimo, silenciosos em relação ao que se passava na URSS. Destacando o papel que a decadência da linguagem pública – lá, como aqui, engessada por veladas adesões ideológicas, afetações de bom-mocismo e crises agudas de meiotermismo dogmático – desempenhava na política, Orwell não poupou os seus contemporâneos – as Suzanas Singers e Mirians Leitões da época – de duras críticas. O quadro que ele descreve em “A Liberdade de Imprensa” (1945), prefácio original escrito para A Revolução dos Bichos, é lobregamente familiar: “O fato sinistro em relação à censura literária na Inglaterra é que ela é, em grande medida, voluntária. Idéias impopulares podem ser silenciadas, e fatos inconvenientes mantidos no escuro, sem a necessidade de uma proibição oficial. Quem morou muito tempo num país estrangeiro saberá de exemplos de notícias sensacionais – coisas que por seus próprios méritos ganhariam grandes manchetes – que ficaram de fora da imprensa britânica, não porque o governo interveio, mas devido a um acordo tácito geral de que ‘não seria conveniente’ mencionar aquele fato em particular.”
Como, lendo isso, não lembrar do empenho da nossa imprensa em, primeiro, ocultar a existência do Foro de São Paulo, e depois, quando isso já não era possível, minimizar a sua importância? Mas Orwell não pára por aí. Linhas adiante, é como se falasse de nós: “Em qualquer momento dado, há uma ortodoxia, um corpo de idéias que se supõe que todas as pessoas bem pensantes aceitarão sem questionar. Não é exatamente proibido dizer isso ou aquilo, mas é ‘impróprio’ dizê-lo, assim como na época vitoriana era ‘impróprio’ mencionar calças na presença de uma senhora. Quem desafia a ortodoxia dominante se vê silenciado com surpreendente eficácia. Uma opinião genuinamente fora de moda quase nunca recebe uma atenção justa, seja na imprensa popular ou nos ditos periódicos cultos (…) Desde que o prestígio da União Soviética não esteja envolvido, o princípio da liberdade de expressão tem sido razoavelmente mantido. Há outros temas proibidos (…), mas a atitude predominante em relação à União Soviética é o sintoma mais grave. É como se fosse espontânea e não se devesse à ação de nenhum grupo de pressão (…) A intelligentsia literária e científica, as próprias pessoas que deveriam ser os guardiões da liberdade, começa a desprezá-la, tanto na teoria como na prática.”
Orwell não estava sozinho. A escritora britânica e prêmio nobel de literatura Doris Lessing – nascida, de fato, no Curdistão, e criada na Rodésia (atual Zimbábue) – também denunciou essa espécie de totalitarismo difuso, que ela associava então à emergência do “politicamente correto”. Autora, entre outros livros, de A Canção da Relva, uma sutil obra-prima contra o racismo onipresente na sua bem conhecida África Austral (lembrando que Lessing foi banida da Rodésia e da África do Sul por sua oposição ao apartheid), ela escreveu um vigoroso ensaio-denúncia intitulado, sem mais, “Censura”.
Parecendo dar razão à opinião de Antônio Fagundes, Lessing comenta naquele ensaio: “A censura direta e não ambígua, como parte do controle estatal, é mais fácil de combater do que os resultados indiretos dela (…) Há certas épocas e espaços em que fazemos conluio com a tirania, de maneiras mais diretas do que simplesmente não notar o que se passa (…) Uma coisa chocante: mas todos temos censores internos, e frequentemente não suspeitamos disso. É difícil escapar de um modo predominante de pensar, particularmente quando você está convencido de viver numa sociedade livre (…) A mais poderosa tirania mental naquilo que chamamos de mundo livre é o Politicamente Correto, que é tanto e imediatamente evidente, observado em toda parte, quanto invisível, qual um gás venenoso, pois suas influências estão frequentemente distantes da fonte originária, manifestando-se como uma intolerância generalizada (…) O problema é que as pessoas que precisam da rigidez, dos dogmas, das ideologias são sempre as mais estúpidas, portanto o
Politicamente Correto é uma máquina auto-perpetuadora de afastar os inteligentes e os criativos. Ele está formando uma classe de pessoas – pesquisadores, jornalistas, educadores em particular – exiladas em sua própria cultura, por vezes mantidas em empregos inferiores, ou mesmo desempregadas, e, no entanto, elas são frequentemente as melhores, as mais inovadores, as mais flexíveis (…) As intolerâncias religiosas foram sucedidas pelo comunismo, o seu reflexo no espelho, que armou o palco para o Politicamente Correto. O que vem a seguir?”.
Não sabemos. Mas o fato é que, salvo raras e honrosas exceções, os formadores de opinião no Brasil – alguns por fanatismo ideológico, outros por dinheiro, outros ainda por pura covardia – têm criado uma verdadeira “máquina auto-perpetuadora” contra opiniões diversas e independentes. A censura é, em larga medida, “voluntária”, no sentido denunciado por Orwell. Sendo assim, o antigo projeto do partido governante de controlar a imprensa – com essa tão sonhada “lei dos meios” – periga restar desnecessário, uma vez que profissionais como a Sra. Miriam Leitão, e muitos outros da mesma cepa, parecem ter se oferecido docemente como fiscais das opiniões de seus pares.
Fagundes está certo. Se, durante a ditadura, tínhamos uma censura autoritária e visível (frequentemente burlada, como muitos artistas e jornalistas da época já cansaram de confessar, até com certa graça), hoje temos uma censura totalitária, invisível, grave, onipresente. Ela não comporta gracejos nem brechas. Se, antes, ela vinha exclusivamente do governo, hoje ela é mais de tipo soviético-chinês, e o censor pode estar ao lado. No fim das contas, a verdade é que, como concluiu Lessing, “os amantes da autoridade, não importa o quão cruel, estarão sempre entre nós.”
Artigo publicado no blog O Brasil e o Universo
*Flávio Gordon tem 34 anos, é carioca, casado, doutor em antropologia, autor do blog “O Brasil e o Universo: crônicas sobre a surrealidade política e cultural brasileira” e, assim como o saudoso poeta Bruno Tolentino, também quer o seu país de volta.